sexta-feira, 1 de maio de 2020

O FUNERAL DE UM QUASE EXCLUÍDO



            Era mais um dia comum na corriqueira cidade do interior encalorado do Norte Pioneiro do Estado do Paraná quando o carro de som anuncia a plenos pulmões mecânicos o falecimento de Rontinho, que, na certidão de nascimento, tinha a estranha alcunha de Roberto Alves da Silva. O guardamento seria no Velório Municipal, cujo prédio, outrora, fora consultório de um querido pediatra. O sepultamento, logo mais às 17hs, anunciava o carro de som. Finalizava com um solene “Os familiares agradecem os que se fizerem presentes, por mais este ato de fé e caridade cristã.”
            Pela velocidade que o carro percorria as ruas, o som, para alguns ouvintes curiosos, ficava entrecortado. Alguns duvidavam da competência do anunciante por isso, mas ninguém o questionava, pelo menos não cara a cara, todavia, o importante era que dali a alguns anúncios toda a cidade saberia de quem se tratava, visto que os entrecortes do som eram completados pelos diálogos dos espalhafatosos fofoqueiros. Não, fofoqueiro não, dizia seu José, apenas um mero transmissor da notícia.
                O comunicado se deu aproximadamente pelas dez da manhã de uma quarta-feira. A partir daí a comunidade expressou tímidos movimentos por cochichos, relatos, surpresa, obviedade e risos, principalmente nos bares. O falecido costumava todo dia embriagar-se acompanhado de vários amigos. Destes ilustres colegas há quem dormisse na praça, os mais radicais; enquanto outros praticamente moravam nos horríveis ou pitorescos botecos da pequena periferia; e, uma facção mais seleta, enchia a cara no regaço de seu lar.
                Sem dúvida Rontinho era alcoólatra. Todavia o caso dele era peculiar. Trabalhava da madrugada até ao meio dia; depois disso, sim, é que bebia todas. Às sete da noite desmaiava no leito, acordando outro dia um pouco antes do horário de se dedicar à molambenta varrição de ruas. Determinadas vezes, o sono era interrompido por vômitos e quedas da cama. A sujeira ficava por conta de Dona Jêfa, sua mãe. Apesar da bebida, nunca o filho perdeu dia de serviço por irresponsabilidade, apenas em razão de agravos de saúde.
              Admitido em sua função devido a promessas políticas, era uma espécie de gari, um funcionário público; introduzido ilegalmente no funcionalismo da prefeitura. O povo não discriminava o prefeito pela ilegalidade, na verdade consideravam uma boa ação, era a oportunidade de ouro para que talvez, e somente talvez, um ébrio se recuperasse, além disso o citado prefeito sempre se reelegia.        
            Morreu entre os trinta e quarenta anos de vida. Além do vício possuía uma leve deficiência mental; nada que o fizesse incapaz de entender as coisas mais óbvias da vida, como certo e errado, bem e mal, liga e desliga, apenas tinha dificuldade insuperável de anular ou votar em branco.
             A família do cadáver era a mãe e nada mais, desse modo naquele velório só D. Jêfa havia de sóbria. Não estava triste pela morte do filho; as centenas de vezes que limpara os vômitos e também o cheiro do colchão mijado não permitiam sentir tristeza, mas alívio. Não era mãe desnaturada não, tentou fazer o que pôde, mas falhou e, agora, após a morte do filho, sentia cumprida a missão. Depois do filho, agora sim poderia partir. Espera sua vez com um pouco de ansiedade. Quem sabe no outro mundo ele não bebesse mais e até vestisse uma roupa alvinha. Se existisse inferno não imaginava um pior do que passava em vida. Seu coração tinha tanta dor que nem doía mais, apenas o vazio, o nada; a pedra cauterizada, era como imaginava a bomba incansável da vida. No velório se portava firme, sempre de guarda, vigiando com diligência para que nenhum dos amigos do infame tropicasse e derrubasse o caixão.
             Acenderam a vela de sete dias, colocaram a coroa e o caixão mais baratos que o fundo mútuo garantia. Na curta velança cerca de trinta companheiros e companheiras, todos alcoólatras e bebidos, ajudavam a guardar o corpo. O primeiro que passou pelo caixão persignou-se murmurando algumas palavras. Os outros, como macacos amestrados, fizeram exatamente o mesmo, recitando inclusive idênticas palavras; a única variação era dada pelo tom de voz e o vigor ou invigor dos gestos. Antes disso, os ébrios já esperavam o corpo do companheiro com corotinhos de pinga comprados à bagatela e com o dinheiro auferido em vaquinhas de centavos ou doados por cidadãos que queriam ver o circo pegar fogo.
            Foi um dia de fuzuê na humilde cidade, com bêbados para todo lado, ora ignorados, ora sendo o show da vez, ora brutalmente hostilizados e alvo de chacotas sarcásticas e perversas. Inobstante ao contratempo, tudo era festa para os que estavam turbinados com a pinga, quer fosse a branquinha ou a amarelinha, isso porque após do segundo trago a cor já não era considerada um fator real de preferência.
         Um seminarista foi encarregado de fazer as exéquias. Já na casa mortuária, deparou-se com o cheiro de álcool e de corpos que jaziam semanas sem banho. O aroma invadiu-lhe as narinas, teve asco. O estômago fraco exigiu-lhe grande esforço para impedir que o farto almoço retornasse esôfago acima. Usou o instinto de sobrevivência, permaneceu próximo à janela e pediu para que abrissem todas as portas. Sorte estar ventando, não fosse isso o seminarista teria logo vomitado. Olhando para todas aquelas pessoas, mudou seu cultivado conceito sobre a solenidade da morte e se perguntou por que jamais vira, nas exéquias celebradas por bispos e padres, pessoas daquele calibre, que de tal espessura, nem a experiência protegia.
       Agora os companheiros do morto bêbado se compadeciam e, pelas palavras ensaiadas do cerimonial, alguns choravam e outros talagavam a garrafinha numa tentativa de buscar lá do fundo a força que lhes faltava. O seminarista, vendo que ninguém prestava realmente atenção no que falava, e que os animais se limitavam a imitá-lo em seus gestos, abreviou a cerimônia a alguns poucos minutos, despachando depressa o caixão.
            O apático agente funerário buscou o carro para transportar o corpo, e com a ajuda de um companheiro colocou o caixão no furgão.
          O cortejo saiu bem devagar, os bebuns, saíram trançando as pernas, acompanhavam o féretro como podiam. Muitos se enganchavam uns aos outros, pretendendo, assim, evitar o tombo. Havia choros, risos e gritos de viva. Apenas o agente funerário mantinha a insensibilidade, realmente um profissional, para ele, todos federiam do mesmo jeito, ninguém era bonito ou feio, só uma carcaça pronta a entrar em putrefação e ser dilacerada pelos incansáveis vermes.
            O furgão ia lento, mantinha as portas traseiras abertas. Perto do caixão, a mãe caminhava serena olhando as lajotas hexagonais da rua. Logo atrás, os trinta ébrios, – desses, apenas sete mulheres – ostentavam tristeza e alegria intercaladas. Os passantes paravam para olhar, alguns tiraram fotos a fim de postá-las na net num tentame de fazer um escárnio particular se tornar global.
            Do velório ao cemitério teriam de percorrer cinco quadras, cujo trajeto transpassaria em linha perpendicular os portões de uma escola de ensino fundamental e médio. A hora do enterro coincidia com a saída dos alunos do turno da tarde. Os anjinhos desciam em sentido contrário e, ao passar pelo cortejo não conseguiam ficar sérios e gargalhavam. Apenas os tímidos e raras almas piedosas se continham. Passada a vazante de alunos, alguma das mulheres que acompanhava, ébria, a procissão, puxou uma Ave Maria. Os procissionários conseguiam acompanhar até Jesus, a outra parte não lembravam; ficaram repetindo a primeira parte, até que alguém deu sequência ao Pai Nosso. Recitavam-no até o “venha a nós o vosso reino”, após, dava um branco coletivo. O trajeto foi marcado não com pedaços de pão, mas com corotinhos vazios de cachaça, portanto, ninguém se perderia no retorno. Os residentes nos endereços por que passava o préstito saíam às janelas para ver o espetáculo. Recatados observavam por alguma fresta ou disfarçados pela cortina, enquanto despudorados saíam aos muros; precisavam visualizar a via penitente.
            Chegando ao cemitério, os dois agentes funerários pegaram no caixão e pediram ajuda aos companheiros do morto, os quais fizeram o último esforço para levar o amigo. Os agentes faziam uma força descomunal, pois os bêbados se confundiam na hora de levar a urna, cada um puxava para um lado e dois soltaram o peso sobre o esquife... O caixão caiu. De sóbrios, só os agentes funerários, o coveiro e a mãe, porém esta não podia ajudar, o peso era muito maior do que podia suportar.
            O jeito era improvisar, o coveiro serviu-se de um carrinho de mão e juntamente com os agentes, colocaram o féretro sobre. Os agentes equilibravam o caixão um de cada lado, ao passo que o coveiro empurrava a carriola, foram deste modo por alguns cinquenta metros até chegarem ao muro das lamentações, como apelidara o povo, um conjunto de gavetas mortuárias sobrepostas, um paredão de sepulcros de aspecto horrível e extremo mal gosto e que era a solução de quem não possuía lugar pra cair morto.
            Por azar do coveiro e dos agentes a gaveta na qual o peso morto iria finalmente descansar, ficava à altura do peito. Tiveram mais uma vez de fazer força. O coveiro deixou escapar um palavrão; porém, imediatamente arrependeu-se olhando envergonhado para a mãe do morto. No entanto, instantes depois, quando viu os companheiros do defunto pulando sobre túmulos, cantando e dançando, novamente se irritou.  Alguns dos baderneiros, depois de exaustos, permaneciam sentados e imóveis, parecendo mortos.
            Depois de muito esforço enfiaram o fardo na gaveta, imediatamente os funerários viraram as costas e se foram. O coveiro pegava tijolos para lacrar a gaveta. A mãe esperava. Entre cinco amigos da coisa, ainda não tombados pela cana, formou-se a ideia de deixar como homenagem um corotinho dentro da gaveta mortuária, logo abandonaram a intenção, consideraram desperdício. Ouvindo essa conversa a mãe do estorvo deixou escorrer uma lágrima dura. Porém, depressa a enxugou. Esperou até que o coveiro colocasse o último tijolo e foi embora, sentindo-se leve. Já em casa, pegou as roupas do falecido e o colchão malcheiroso, muitas vezes urinado, lançou-os no fundo do quintal e ateou fogo. Guardou do canalha apenas uma foto de cinco anos de idade, as outras lembranças não valiam a pena. Limpou toda a casa, jantou, agradeceu a Deus e dormiu a noite toda, como há tempos não fazia.
            Ainda no cemitério, o coveiro ficou fulo no momento em que olhou ao redor e viu todos os companheiros daquela desgraça, desfalecidos pelos corredores apertados por entre os túmulos. O sol quase se punha, o sepultador tentou acordá-los em vão. Ligou para a prefeitura, pediu ajuda, ninguém apareceu. Tentou colocar um na carriola e transportar para fora, mas o infeliz vomitou sobre sua botina, o que desencadeou uma raiva interna, impossível de ser contida, fazendo o funcionário municipal atirar ao ar um impropério. Resolveu ir embora, chaveou a terra dos pés juntos e foi embora praguejando. 
              Chegando à casa, sua mulher o repreendeu e o convenceu a retirar os bêbados de lá, afinal tinha de zelar pelo emprego. E se acontecesse algo com o cemitério? Ele concordou, mas levou a mulher.             Usando a carriola, eles foram baldeando os montes um a um e os colocaram na calçada do lado de fora. Terminaram a baldeação onze da noite, tendo como testemunhas as estrelas e algumas pessoas, que acharam aquilo estranho, mas fingiram que era normal e continuaram seu caminho.