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sexta-feira, 1 de maio de 2020

O FUNERAL DE UM QUASE EXCLUÍDO



            Era mais um dia comum na corriqueira cidade do interior encalorado do Norte Pioneiro do Estado do Paraná quando o carro de som anuncia a plenos pulmões mecânicos o falecimento de Rontinho, que, na certidão de nascimento, tinha a estranha alcunha de Roberto Alves da Silva. O guardamento seria no Velório Municipal, cujo prédio, outrora, fora consultório de um querido pediatra. O sepultamento, logo mais às 17hs, anunciava o carro de som. Finalizava com um solene “Os familiares agradecem os que se fizerem presentes, por mais este ato de fé e caridade cristã.”
            Pela velocidade que o carro percorria as ruas, o som, para alguns ouvintes curiosos, ficava entrecortado. Alguns duvidavam da competência do anunciante por isso, mas ninguém o questionava, pelo menos não cara a cara, todavia, o importante era que dali a alguns anúncios toda a cidade saberia de quem se tratava, visto que os entrecortes do som eram completados pelos diálogos dos espalhafatosos fofoqueiros. Não, fofoqueiro não, dizia seu José, apenas um mero transmissor da notícia.
                O comunicado se deu aproximadamente pelas dez da manhã de uma quarta-feira. A partir daí a comunidade expressou tímidos movimentos por cochichos, relatos, surpresa, obviedade e risos, principalmente nos bares. O falecido costumava todo dia embriagar-se acompanhado de vários amigos. Destes ilustres colegas há quem dormisse na praça, os mais radicais; enquanto outros praticamente moravam nos horríveis ou pitorescos botecos da pequena periferia; e, uma facção mais seleta, enchia a cara no regaço de seu lar.
                Sem dúvida Rontinho era alcoólatra. Todavia o caso dele era peculiar. Trabalhava da madrugada até ao meio dia; depois disso, sim, é que bebia todas. Às sete da noite desmaiava no leito, acordando outro dia um pouco antes do horário de se dedicar à molambenta varrição de ruas. Determinadas vezes, o sono era interrompido por vômitos e quedas da cama. A sujeira ficava por conta de Dona Jêfa, sua mãe. Apesar da bebida, nunca o filho perdeu dia de serviço por irresponsabilidade, apenas em razão de agravos de saúde.
              Admitido em sua função devido a promessas políticas, era uma espécie de gari, um funcionário público; introduzido ilegalmente no funcionalismo da prefeitura. O povo não discriminava o prefeito pela ilegalidade, na verdade consideravam uma boa ação, era a oportunidade de ouro para que talvez, e somente talvez, um ébrio se recuperasse, além disso o citado prefeito sempre se reelegia.        
            Morreu entre os trinta e quarenta anos de vida. Além do vício possuía uma leve deficiência mental; nada que o fizesse incapaz de entender as coisas mais óbvias da vida, como certo e errado, bem e mal, liga e desliga, apenas tinha dificuldade insuperável de anular ou votar em branco.
             A família do cadáver era a mãe e nada mais, desse modo naquele velório só D. Jêfa havia de sóbria. Não estava triste pela morte do filho; as centenas de vezes que limpara os vômitos e também o cheiro do colchão mijado não permitiam sentir tristeza, mas alívio. Não era mãe desnaturada não, tentou fazer o que pôde, mas falhou e, agora, após a morte do filho, sentia cumprida a missão. Depois do filho, agora sim poderia partir. Espera sua vez com um pouco de ansiedade. Quem sabe no outro mundo ele não bebesse mais e até vestisse uma roupa alvinha. Se existisse inferno não imaginava um pior do que passava em vida. Seu coração tinha tanta dor que nem doía mais, apenas o vazio, o nada; a pedra cauterizada, era como imaginava a bomba incansável da vida. No velório se portava firme, sempre de guarda, vigiando com diligência para que nenhum dos amigos do infame tropicasse e derrubasse o caixão.
             Acenderam a vela de sete dias, colocaram a coroa e o caixão mais baratos que o fundo mútuo garantia. Na curta velança cerca de trinta companheiros e companheiras, todos alcoólatras e bebidos, ajudavam a guardar o corpo. O primeiro que passou pelo caixão persignou-se murmurando algumas palavras. Os outros, como macacos amestrados, fizeram exatamente o mesmo, recitando inclusive idênticas palavras; a única variação era dada pelo tom de voz e o vigor ou invigor dos gestos. Antes disso, os ébrios já esperavam o corpo do companheiro com corotinhos de pinga comprados à bagatela e com o dinheiro auferido em vaquinhas de centavos ou doados por cidadãos que queriam ver o circo pegar fogo.
            Foi um dia de fuzuê na humilde cidade, com bêbados para todo lado, ora ignorados, ora sendo o show da vez, ora brutalmente hostilizados e alvo de chacotas sarcásticas e perversas. Inobstante ao contratempo, tudo era festa para os que estavam turbinados com a pinga, quer fosse a branquinha ou a amarelinha, isso porque após do segundo trago a cor já não era considerada um fator real de preferência.
         Um seminarista foi encarregado de fazer as exéquias. Já na casa mortuária, deparou-se com o cheiro de álcool e de corpos que jaziam semanas sem banho. O aroma invadiu-lhe as narinas, teve asco. O estômago fraco exigiu-lhe grande esforço para impedir que o farto almoço retornasse esôfago acima. Usou o instinto de sobrevivência, permaneceu próximo à janela e pediu para que abrissem todas as portas. Sorte estar ventando, não fosse isso o seminarista teria logo vomitado. Olhando para todas aquelas pessoas, mudou seu cultivado conceito sobre a solenidade da morte e se perguntou por que jamais vira, nas exéquias celebradas por bispos e padres, pessoas daquele calibre, que de tal espessura, nem a experiência protegia.
       Agora os companheiros do morto bêbado se compadeciam e, pelas palavras ensaiadas do cerimonial, alguns choravam e outros talagavam a garrafinha numa tentativa de buscar lá do fundo a força que lhes faltava. O seminarista, vendo que ninguém prestava realmente atenção no que falava, e que os animais se limitavam a imitá-lo em seus gestos, abreviou a cerimônia a alguns poucos minutos, despachando depressa o caixão.
            O apático agente funerário buscou o carro para transportar o corpo, e com a ajuda de um companheiro colocou o caixão no furgão.
          O cortejo saiu bem devagar, os bebuns, saíram trançando as pernas, acompanhavam o féretro como podiam. Muitos se enganchavam uns aos outros, pretendendo, assim, evitar o tombo. Havia choros, risos e gritos de viva. Apenas o agente funerário mantinha a insensibilidade, realmente um profissional, para ele, todos federiam do mesmo jeito, ninguém era bonito ou feio, só uma carcaça pronta a entrar em putrefação e ser dilacerada pelos incansáveis vermes.
            O furgão ia lento, mantinha as portas traseiras abertas. Perto do caixão, a mãe caminhava serena olhando as lajotas hexagonais da rua. Logo atrás, os trinta ébrios, – desses, apenas sete mulheres – ostentavam tristeza e alegria intercaladas. Os passantes paravam para olhar, alguns tiraram fotos a fim de postá-las na net num tentame de fazer um escárnio particular se tornar global.
            Do velório ao cemitério teriam de percorrer cinco quadras, cujo trajeto transpassaria em linha perpendicular os portões de uma escola de ensino fundamental e médio. A hora do enterro coincidia com a saída dos alunos do turno da tarde. Os anjinhos desciam em sentido contrário e, ao passar pelo cortejo não conseguiam ficar sérios e gargalhavam. Apenas os tímidos e raras almas piedosas se continham. Passada a vazante de alunos, alguma das mulheres que acompanhava, ébria, a procissão, puxou uma Ave Maria. Os procissionários conseguiam acompanhar até Jesus, a outra parte não lembravam; ficaram repetindo a primeira parte, até que alguém deu sequência ao Pai Nosso. Recitavam-no até o “venha a nós o vosso reino”, após, dava um branco coletivo. O trajeto foi marcado não com pedaços de pão, mas com corotinhos vazios de cachaça, portanto, ninguém se perderia no retorno. Os residentes nos endereços por que passava o préstito saíam às janelas para ver o espetáculo. Recatados observavam por alguma fresta ou disfarçados pela cortina, enquanto despudorados saíam aos muros; precisavam visualizar a via penitente.
            Chegando ao cemitério, os dois agentes funerários pegaram no caixão e pediram ajuda aos companheiros do morto, os quais fizeram o último esforço para levar o amigo. Os agentes faziam uma força descomunal, pois os bêbados se confundiam na hora de levar a urna, cada um puxava para um lado e dois soltaram o peso sobre o esquife... O caixão caiu. De sóbrios, só os agentes funerários, o coveiro e a mãe, porém esta não podia ajudar, o peso era muito maior do que podia suportar.
            O jeito era improvisar, o coveiro serviu-se de um carrinho de mão e juntamente com os agentes, colocaram o féretro sobre. Os agentes equilibravam o caixão um de cada lado, ao passo que o coveiro empurrava a carriola, foram deste modo por alguns cinquenta metros até chegarem ao muro das lamentações, como apelidara o povo, um conjunto de gavetas mortuárias sobrepostas, um paredão de sepulcros de aspecto horrível e extremo mal gosto e que era a solução de quem não possuía lugar pra cair morto.
            Por azar do coveiro e dos agentes a gaveta na qual o peso morto iria finalmente descansar, ficava à altura do peito. Tiveram mais uma vez de fazer força. O coveiro deixou escapar um palavrão; porém, imediatamente arrependeu-se olhando envergonhado para a mãe do morto. No entanto, instantes depois, quando viu os companheiros do defunto pulando sobre túmulos, cantando e dançando, novamente se irritou.  Alguns dos baderneiros, depois de exaustos, permaneciam sentados e imóveis, parecendo mortos.
            Depois de muito esforço enfiaram o fardo na gaveta, imediatamente os funerários viraram as costas e se foram. O coveiro pegava tijolos para lacrar a gaveta. A mãe esperava. Entre cinco amigos da coisa, ainda não tombados pela cana, formou-se a ideia de deixar como homenagem um corotinho dentro da gaveta mortuária, logo abandonaram a intenção, consideraram desperdício. Ouvindo essa conversa a mãe do estorvo deixou escorrer uma lágrima dura. Porém, depressa a enxugou. Esperou até que o coveiro colocasse o último tijolo e foi embora, sentindo-se leve. Já em casa, pegou as roupas do falecido e o colchão malcheiroso, muitas vezes urinado, lançou-os no fundo do quintal e ateou fogo. Guardou do canalha apenas uma foto de cinco anos de idade, as outras lembranças não valiam a pena. Limpou toda a casa, jantou, agradeceu a Deus e dormiu a noite toda, como há tempos não fazia.
            Ainda no cemitério, o coveiro ficou fulo no momento em que olhou ao redor e viu todos os companheiros daquela desgraça, desfalecidos pelos corredores apertados por entre os túmulos. O sol quase se punha, o sepultador tentou acordá-los em vão. Ligou para a prefeitura, pediu ajuda, ninguém apareceu. Tentou colocar um na carriola e transportar para fora, mas o infeliz vomitou sobre sua botina, o que desencadeou uma raiva interna, impossível de ser contida, fazendo o funcionário municipal atirar ao ar um impropério. Resolveu ir embora, chaveou a terra dos pés juntos e foi embora praguejando. 
              Chegando à casa, sua mulher o repreendeu e o convenceu a retirar os bêbados de lá, afinal tinha de zelar pelo emprego. E se acontecesse algo com o cemitério? Ele concordou, mas levou a mulher.             Usando a carriola, eles foram baldeando os montes um a um e os colocaram na calçada do lado de fora. Terminaram a baldeação onze da noite, tendo como testemunhas as estrelas e algumas pessoas, que acharam aquilo estranho, mas fingiram que era normal e continuaram seu caminho.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Boi de Trela



            O mugido era a única reclamação que podia se ouvir de Sereno, um boi de trela baio, de porte mediano e chifres avermelhados. Nasceu em uma fazenda há aproximadamente cinquenta anos. Foi desmamado, castrado, e na idade apropriada, por que era muito manso, adestraram-no como boi de trela. Na fazenda havia muitos outros bois assim, mas Sereno foi emprestado ou alugado para dois açougueiros, um pai e um filho que tinham um modesto açougue na região central da pequena Cidade.          
            Os meios de locomoção naquela época, notadamente no interior, eram, cavalo, carroça, charrete e principalmente as pernas, pois eram pouquíssimas as pessoas que tinham veículo. Caminhão ou caminhonete com grade de puxar boi ainda não existia na região. Desse modo, os açougueiros de então tinham que buscar, a cavalo e a laço, os bois para o abate, nos sítios da região. Tal busca demorava, na maioria das vezes, o dia todo. Laçavam o novilho e o atrelavam a Sereno que o conduzia pela estrada até ao Matadouro Municipal, em silêncio e submisso, como quem cumpria uma missão.
            Não havia tempo ruim para Sereno, quando os outros bois ou vacas que conduzia lhe eram atrelados, ele usava de sua inteligência condicionada pela experiência para arrastá-los, caso o boi que lhe estava atrelado tentasse correr para o lado oposto ou para outra direção, Sereno o acompanhava alguns passos e repentinamente girava o corpo na direção determinada, conduzindo a rês para o destino que queria. As técnicas e a experiência de Sereno praticamente não davam chance de resistência àqueles que lhe eram atrelados, ademais, como sendo semelhantes, os bois ou vacas que trazia, sentiam-se entre iguais, por isso, não demorava muito para que o seguissem, iam direto ao destino cruel determinado à espécie. Sem saber, matavam a fome de muitos, até das formigas, que se aproveitavam dos restos. Nada se perdia, a não ser a parte imaterial do animal.
            Pai, filho e Sereno eram admirados pelas pessoas do lugarejo, principalmente quando voltavam à Cidade. A cena da chegada era admirável, sobretudo ao entardecer, quando o sol os emoldurava em uma tela viva: os dois cavalos negros e imponentes, Sereno com sua impassibilidade calma e submissa, o boi atrelado e os cavaleiros jactanciosos por ter cumprido a missão. Tal cena fazia com que as mulheres saíssem à janela para ver os açougueiros passar. As crianças, com os pés descalços e as roupas rotas, corriam pela rua empoeirada espalhando pó ao vento. Elas adoravam o Sereno. “Como ele é mansinho! Olha a força dele, ele puxa o outro boi como se fosse nada! Como ele é bonito! Serêêêno, Serêêêno, aôôu, aôôu!” Essas eram as palavras e interjeições dos meninos brincalhões. Alguns passavam horas a fio brincando de conduzir bois, havia um deles que até sonhava em ter um boi de trela mansinho e bom como o Sereno.
            As aventuras de Sereno eram muitas e a cada dia que cumpria sua missão (cerca de duas ou três vezes por semana, a depender da demanda) se formava uma história que nas mãos de um hábil poeta, poderiam transformar-se em canções ou poesias. Certa vez, por exemplo, os açougueiros demoraram a laçar o boi que iria ser abatido, de modo que a noite não esperou e caiu rápida e gelada. Depois de finalmente atrelarem o boi a Sereno, desmontaram e se dirigiram a uma venda em um pequeno Patrimônio, pediram um pão com mortadela e um copo de capilé. Forraram o estômago e enganaram a fome. Quando se deram conta de observarem lá fora, não viram nem Sereno nem o outro boi, ficaram procurando pelo mato até altas horas, como se fracos pelo insucesso da procura, retornaram e não foi pequena a surpresa alegre ao ver Sereno esperando com o boi atrelado na beira do tronco do matadouro. Como sempre, esperava que alguém o desatrelasse e o soltasse no pasto onde se alimentava, junto com os cavalos e duas vaquinhas de leite.
            Numa outra ocasião, quando o céu ameaçava uma grande tempestade, Sereno, pressentindo o perigo, deitou no chão e estacou, os açougueiros tentavam levantá-lo através de empurrões e gritos, mas não conseguiam, tiveram que esperar. Esperaram muito tempo, porém foram salvos da morte pela empacada de Sereno, pois enquanto ele ficou parado, a água do rio que teriam de atravessar por intermédio de uma ponte de madeira, subiu rapidamente, levando a ponte embora em questão de segundos. Após a ponte cair, Sereno se levantou e os açougueiros acreditaram que era um milagre, agradecendo a Deus em seus corações.
            Determinado dia, Sereno estava trazendo uma vaca por uma estrada de terra ladeada por algumas árvores que cobriam seu leito com uma sombra suntuosa e fresca. Era necessário atravessar uma ponte de madeira, acontecimento normal, não fosse o fato de a vaca estar se agitando muito, tentando ir para várias direções, por esse motivo, Sereno praticamente a arrastava. Por tudo isso, quanto chegaram exatamente em cima da ponte, a qual era sobreposta há quatro metros acima do nível da água de um pequeno ribeirão, a vaca, ainda atrelada a Sereno, se precipitou de cima da ponte, este, com sua força de boi, estacou os cascos e foi escorregando com o peso da vaca, mas inteligentemente e calmamente apoiou as patas na viga pregada na beirada da ponte e assim sustentou-a, a qual ficou dependurada, girando lentamente no ar. Sereno não soltou sequer um berro, sua fisionomia continuava a mesma. A calma de Sereno era tão grande que ele, mesmo na beirinha da ponte, olhava para a vaca, balançava as orelhas e espantava algumas moscas com o rabo. Não era possível, todavia, ele erguer a vaca, pois seus cascos não encontravam aderência para puxá-la, apenas a sustentava calmamente, como que esperando uma ação dos açougueiros. Vendo isso, os açougueiros se admiraram e sabiam que tinham de tomar alguma providência, então o filho do açougueiro apeou rapidamente de seu cavalo e puxando a faca da bainha, cortou a corda que unia Sereno a vaca, esta caiu no ribeirão e se alongou no mato, tendo de ser laçada mais tarde.
            Por todos esses acontecimentos e por muitos outros, Sereno era uma lenda viva naquela localidade. Cada pessoa da pequena Cidade tinha um causo para contar sobre ele.
            O serviço dele era levar os semelhantes ao matadouro e ele o fazia bem e sem questionamentos, não há como saber se ele sentia o cheiro de sangue do abatedouro, mas de qualquer forma, nunca demonstrou que sentisse, era do tipo, pode-se dizer, de boi que todo o patrão deseja. Não se sabe se Sereno tinha ou não consciência do que fazia, talvez tivesse, mas como ser diferente? Ele era só um boi e não podia opinar nem que quisesse. A revolta não fazia parte de seu ser, o raciocínio, não se sabe como funcionava, ou os outros bois não representavam nada para ele, se representassem, não haveria como os salvar, no mundo havia os carnívoros, dos quais não há escape. Ainda há a possibilidade de que fazia o serviço devido a interesses, pois enquanto estivesse trabalhando, não seria devorado, porém tais apontamentos são apenas hipóteses e ninguém vai saber se correspondem ou não a realidade. Não nos é dado sondar os pensamentos de um animal.
            O progresso foi chegando e logo os açougueiros não mais precisaram dos serviços de Sereno, devolveram-no ao seu dono, as crianças sentiam falta dele e perguntavam frequentemente: “Onde está o Sereno, por que ele não está mais trazendo os outros bois?” Havia ficado enfadonho para os açougueiros explicarem para os piás. Todo dia faziam a mesma pergunta. No entanto as perguntas não duraram muito, passado alguns dias, pararam de perguntar, começaram a brincar de bolinha de gude e as lembranças de Sereno pouco a pouco se apagavam de suas pequenas memórias.
            Não havia mais utilidade para os bois de trela da fazenda, então o proprietário resolveu vender alguns deles antes que ficassem velhos demais, quando a carne fica muito dura e o osso pesado, além do que demoram muito para engordar. Sereno foi vendido para o abate, e foram os mesmos açougueiros que o utilizaram os abatedores. Por um momento houve uma reflexão dos açougueiros: “Dava uma dó matar um boi que nos ajudou tanto”.
            Quando Sereno, já no curral para ser abatido reconheceu os açougueiros, berrou num sinal de reconhecimento e lambeu a mão do filho do açougueiro, não se sabe se Sereno estava resignado com o destino que o aguardava ou se tinha ainda uma esperança de viver. O açougueiro pai disse: “Realmente é de dar dó, mas nós não podemos fazer nada para mudar o destino do boi, apesar de nos ter servido muito bem. Aqui, meu filho, não só ele, mas nós somos impotentes contra esse destino ingrato, mesmo que o soltássemos no pasto, o fim dele seria morrer de velho, o que é muito pior, pois seus dentes começariam a cair e seria custoso para ele pastar, vamos deixá-lo morrer, é o mais sensato.”
            Sereno, olhava ao redor e parecia se lembrar de todos os bois que trouxera para o abate, provavelmente sabia o que o aguardava, mesmo assim não recuou, foi adiante sem virar nem para direita, nem para a esquerda. Finalmente, atingido pela lança em sua nuca, caiu agonizando e foi enfim sangrado. Assim se deu o fim da vida de Sereno.
            Muitos dos que admiravam Sereno comeram a carne dele, alguns sabendo, outros sem saber, e a acharam muito saborosa, como de qualquer gado, apenas o menino que sonhava em ter um boi como Sereno, chorou, pois sua mãe, pobrezinha, houvera pedido no matador a cabeça do boi para retirar os retalhos e usá-los como mistura. (os açougueiros sempre davam os pés e as cabeças dos animais abatidos)
            Quando em sua casa o rapazinho viu a cabeça daquele boi amado e que apesar de ser um animal era seu herói, chorou muito e recusou comer a carne arrancada daquela cabeça, sua mãe ficou admirada com o filho, depois descobriu que era a cabeça de Sereno que estava ali. O menino esperou que a mãe retirasse todos os retalhos da cabeça, cavou uma cova grande e a enterrou ali, junto com um pedaço de papel, onde escreveu, com os garranchos que lhe eram próprios: “Adeus Sereno, espero que um dia te veja no céu”. Nunca mais ninguém falou de Sereno, até o dia em que aquele que enterrara a cabeça, desenterrou de sua memória essa história.


terça-feira, 14 de abril de 2020

Foi em 1980




            Sábado. Na pequena cidade haveria, logo mais à noite, um baile. Norberto estava, a postos, na espera do grande evento. As músicas que rolariam seriam a dos anos oitenta. Estranhamente, nenhum dos três amigos de Norberto poderia ir ao baile. Norberto, irritado, resolveu ir ao baile nem que fosse sozinho. Assim fez, adorava músicas dos anos oitenta, principalmente as internacionais, não poderia perder esta oportunidade de ouvir um flashback. O traje para o baile era livre, mas alguns iriam com roupas temáticas. Norberto resolveu ir bem simples, com calça jeans, all star pretos e camiseta de malha preta. Norberto não usava nenhum acessório tipo brinco, piercing, relógio, pulseiras ou colares. Isso o incomodava, gostava de se sentir o mais natural possível. Contava com 24 anos e considerava-se uma pessoa normal, trabalhava como técnico de segurança do trabalho na maior empresa da cidade, ainda residia com os pais e, há dois meses havia levado um fora da namorada. Seu coração só não estava despedaçado porque nunca amara a namorada. Quis ir ao baile principalmente porque gostava de música dos anos oitenta. No entanto, como iria sozinho, pensou em se embriagar um pouco para sentir-se mais à vontade, afinal de contas, Norberto, como a maioria de nós, ficava um tanto inseguro quando estava em um evento social sem companhia.
            Às 22 horas saiu com o seu Uninho prata de quatro portas. Deu umas voltas pela cidade, passou pela rua da praça, paquerou algumas mulheres, disfarçadamente; visto que era tímido. Encostou no Bonamigos Bar e requisitou um conhaque. Era o esquenta antes da entrada. Com o leve efeito da bebida decidiu trilhar rumo ao baile. Entrou no Uninho, arriscou ser pego no bafômetro. Entretanto sabia que não seria pego, principalmente porque não havia policiais que dessem conta da demanda. Foi. Tentou achar uma vaga na rua do lado do ginásio de esportes, onde seria o baile. Conseguiu estacionar perto de uma quadra de bocha. Fechou o carro e caminhou em direção ao evento. No lado de fora a faixa decorada: “Baile Anos 80”. Norberto sentiu alegria ao ler aqueles dizeres. Já tinha o ingresso na mão; entrou na fila. Eram já 22h50min! O evento estava programado para iniciar as vinte e três horas. Ainda não havia muita gente na fila. A maioria do pessoal costumava entrar para esse tipo de evento de meia noite e meia à uma hora.
            Na fila, um grupinho de cinco garotas chamava atenção pela alegria típica da adolescência. Eram todas lindas e vestiam shorts curtos. Norberto desviou os olhos, hoje tinha vindo pela música. Havia vários casais de namorados adentrando. As músicas do baile, em sua maioria, seriam tocadas por um DJ. Entregou o ingresso para a mulher encarregada de retê-lo e, em seguida, foi instado a dar três passos para frente, tendo sido submetido a uma revista pessoal realizada por um enorme segurança. Após isso, Norberto deu uma olhada no ambiente, cuja decoração era simplesmente genial: Um globo no centro, tecidos para diminuir a altura natural do recinto e, nas paredes laterais, imensos pôsteres das grandes bandas e cantores dos anos 80. Entrou no clima rapidamente, sentiu-se bem. Pena não ter nenhum de meus amigos aqui, pensou.
            Depois de observar a decoração, foi ao banheiro, que ficava logo ao lado direito de quem entrava, dirigiu-se ao mictório, fez o que tinha de fazer, lavou as mãos e finalmente deu uma olhada no espelho visualizando sua tez branca e seus cabelos pretos curtos e arrepiados com um pouco de gel brilhante. Achou que estava bem. Quando voltou do toalete decidiu comprar uma latinha de cerveja. Não queria sair do clima. Naquela hora o baile estava quase vazio. Dez minutos depois começou a seleção de músicas. Norberto estava curtindo muito os sons que estavam sendo tocados. Um detalhe, o cara que regulou o equipamento estava de parabéns, o som estava na medida certa. Dava para curtir a música com qualidade.
            Pouco a pouco foi enchendo; logo o velho ginásio de esportes estaria com muita gente. Norberto ficou mais ou menos no meio do salão. Encostou uma das mãos no alambrado enquanto curtia o som e visualizava o telão. Em algumas músicas mais dançantes ele até que se mexia um pouco, mas como estava inseguro por estar sozinho se conteve. Viu sua ex-namorada, que estava de mão dadas com um carinha. Ignorou-a, apesar de ter notado que sempre ela dava uma olhadela, provavelmente para verificar se o ex ainda sentia alguma coisa; ou, talvez, só para exercitar um pouco a sua costumeira sarcacidade. Norberto pensou, eles se merecem, e virou as costas enquanto dançava embaladamente, como que para demonstrar que a presença dela lhe era indiferente. De fato, não estava fingindo.
            Um grupinho de meninas começou a dançar próximo. Ele foi buscar mais cerveja enquanto curtia a música e observava as garotas e seus trajes e pernas. Não tinha a intenção de chegar em ninguém, mas, oportunista como era, não seria de duvidar que se enlaçasse com a primeira que lhe desse mole.
            Faltando dez para as duas, uma banda cover da Guns N’ Roses daria uma palhinha. Seria um dos grandes momentos do baile. A banda começou tocar exatamente às duas; era o momento pico do baile. Todos estavam em clima de festa. Norberto, curtia, dançava e bebia, já meio zonzo e rindo à toa. Olhando a sua volta percebeu uma porção de homens a sua frente, cujos olhares estavam voltados para trás de si. Instintivamente olhou para onde estavam olhando e viu, bem no centro do local, uma moça lindíssima, com os cabelos curtos com corte chanel repicado, portando reflexos em tonalidade que variava de branco a loiro. Estava com dois tipos de braceletes de couro preto cobrindo seus antebraços. Vestia uma minissaia e uma camiseta branca e bem ajustada. Calçava um coturno preto de cano curto e meias coloridas até a metade do tornozelo. Ela devia ter um metro e setenta. Tinha proporções generosas: coxas grossíssimas e brancas como a neve, sem nenhum defeito aparente. Seios grandes e quadril largo, sem barriga saliente. Os lábios dela eram médios e estavam retocados com batom negro. Maquiou-se com sombras negras nos olhos, o que destacava a cor castanha clara deles. Tinha um sorriso estonteante, era sensual demais e simpática demais e linda demais. Quando Norberto pôs os olhos na garota não mais conseguiu retirar sua atenção dela.
            Ela estava sozinha, mas não ficaria só por muito tempo. Os rapazes que estavam solteiros começaram a rodeá-la, enquanto dançava. A moçoila parecia um anjo sensual, não havia vulgaridade em seus gestos e roupas, apenas sensualidade, graça e beleza. Norberto vendo isso virou mais uma latinha de cerveja e foi buscar outra. Notou que até os homens que estavam com namoradas não conseguiam tirar os olhos daquela musa. As namoradas estavam ficando com cara feia, discutiam com os namorados, mas eles dissimulavam e voltavam os olhos em direção à sensação da noite. Até os músicos vira e mexe davam olhadas para ela.
            Norberto voltou ao seu lugar, observava a moça que estava rodeada por uns cem rapazes; era curioso, pois aqueles que a rodearam se mantinham em um raio de três metros em relação a ela, que dançava com muita sensualidade. As moças solteiras ficaram desapontadas. De repente, nenhum homem as notava, todos os machos tinham olhos apenas para aquela beldade de lábios negros. Interessante que ninguém lhe dirigia a palavra, apenas a ficavam olhando como cachorros que observam um osso, esperando que o dono faça um sinal e possam abocanhá-lo.
            As pessoas estavam dispostas pelo salão da seguinte forma: no centro da quadra a gata misteriosa e sensualíssima. Num raio de três metros em volta dela, aproximadamente cem homens a olhando dançar, completamente hipnotizados. Atrás do círculo de rapazes, umas sessenta garotas solteiras com os braços cruzados, comentando, com inveja, a pouca vergonha que estava acontecendo e se questionando quem seria aquela garota de fora, pois ninguém da pequena cidade a conhecia. Os casais com namorados estavam à frente, perto do palco, mas suas atenções estavam canalizadas para a moça ao centro, de sorte que as namoradas estavam com cara de quem brigou com o mundo. Algumas mais ciumentas tentavam forçar seus namorados a olharem em outra direção, mas eles se quedavam insensíveis a seus apelos.
            A garota sensação dançava no meio de todos aqueles rapazes. Por um momento ficou parada e repentinamente apontou o dedo para um deles e o chamou com um gesto de mão irresistível. O rapaz foi sem pestanejar; ao chegar à frente dela a abraçou ao passo que a garota o beijou na boca. Um beijo nem muito longo nem muito curto. Em seguida ela fez sinal para que o rapaz se afastasse. Ele a obedeceu como um cordeirinho. Assim que o rapaz saiu ela apontou o dedo para outro e o beijou, depois outro e outro. Começou a beijar todos eles, um a um. Norberto observava a cena de um ponto um pouco distante. Era o único solteiro da festa que não estava circundando a moça.
            As raparigas solteiras começaram a se indignar com tamanho descaramento, muitas denominaram a beijoqueira utilizando vários impropérios e palavrões. As garotas que estavam com os namorados ficaram possessas, retiraram os namorados, à força, daquele baile, puxando-os pelos braços. As solteiras também foram embora, não resistiram à pressão da indiferença! Ficou o restante dos homens, os solteiros, esperando a sua vez de serem chamados para o seu momento de felicidade.
            Cada beijado saia com cara de extrema alegria, rindo com os olhos esbugalhados. Parecia que estavam em transe, uns dançavam freneticamente, outros se sentaram ao lado do alambrado decorado e suspiravam. A essa altura o som era só com DJs, a banda já havia acabado sua apresentação. Eram quase três da manhã. Norberto estava extremamente com vontade de beijar aquela garota, sentia a boca salivar de desejo e o corpo arrepiar só de pensar no toque dela. Faltavam agora só dois esperando a vez do beijo... Ela terminou. O batom negro sequer se alterou, apesar daquela infinidade de beijos. Assim que ela acabou de beijar o último foi indo para fora do baile. Os homens que ele tinha beijado continuavam como em transe profundo. Ensimesmados, não notavam mais nada ao redor, nem mesmo a garota.
            Tomado de imenso impulso Norberto foi atrás da mocinha. Estranhamente não sentia qualquer sinal da sua timidez habitual. Abordou-a virilmente pegando-a pelo braço, ela fez meia volta e o olhou nos olhos, sorrindo em seguida. Norberto sentiu algo dentro do peito. Ela esperou, sem palavras. Ele começou a falar.
            – Eu quero te beijar, eu preciso te beijar. Por favor, eu quero te beijar!
            – Eu não quero te beijar, Norberto.
            – Como sabe o meu nome?
            – Eu sei de muita coisa, mas não me convém te contar.
            – Posso ao menos saber o seu nome?
            – Me chamo Lígia Strowski!
            – Você não vai me beijar, Lígia? Eu preciso... – Norberto começou a chorar de desespero pela negativa.
            – Não precisa chorar, Norberto. Eu não quero um beijo seu, quero uma coisa melhor. Quero que você vá embora comigo.
            Norberto sorriu maliciosamente com o pedido; enxugou as lágrimas num instante. Pegou-a nas mãos e a levou até seu carro. Ela olhava para os olhos dele. Entrou no veículo e abriu, por dentro, a porta do carona. Lígia entrou, exalando um perfume fresco. Mesmo com a muvuca do baile e todos aqueles beijos ela permanecia como se estivesse acabado de sair de um banho. Lígia lhe disse que sua casa ficava em um sítio na direção da cidade de Guapirama.            Transitavam pelo asfalto e noite negros, não havia movimentos na estrada. Para curtir o momento ele acelerava a lentos vinte por hora. Curiosamente, não encontrava palavras para dizer, ela também não disse nada. Eles só se flertavam e sorriam um ao outro, como dois apaixonados. Norberto estava feliz.
            Em determinado ponto ela disse as únicas palavras depois que entrou no carro.
            – Pode parar ali. Eu moro logo ali.
            Norberto encostou no estreito acostamento repleto de capim colonião. Nem se ligava nas paisagens, a sua única visão era a adorável Lígia. Logo que o carro estacionou ela abriu a porta e disse “Adeus Norberto, obrigado pela carona! Foi bom te conhecer pessoalmente!” E saiu correndo subindo uma escada que dava para um portal encoberto por algumas vegetações. Norberto teve um ímpeto e um vazio no peito.
            – Espera aí, Ligia! Espera um pouco! – disse ele, abrindo a porta do carro. Saiu correndo atrás dela. Ela nem olhou para trás. Ele subiu as escadas e atravessou o portal, não via nada ao redor, apenas visualizava Lígia correndo a uns cinco metros a sua frente. E como era gracioso observá-la correr com os movimentos das grossas coxas brancas em movimento intermitente e alternativo. Ainda exalava após si um delicioso perfume. Abruptamente ela parou em cima de algo e disse adeus. Ao mesmo tempo em que desapareceu feito uma bolha de sabão. Como num estalar de dedos Norberto percebeu que estava em cima de um túmulo, no meio de um pequeno cemitério, que era chamado pelas pessoas da região de o Cemitério dos Polacos. O jazigo ficava em baixo da sombra tenebrosa de uma falsa seringueira. Quando olhou para as inscrições na lápide se arrepiou dos pés a cabeça e soltou um terrível grito de pânico. Leu o nome da dona da sepultura: Lígia Strowski. Imediatamente seguiu uma terrível rajada de vento e galhos começaram a despencar da seringueira. Norberto saiu correndo apavorado, foi meio que tropeçando pelos túmulos, desceu as escadas, entrou no carro o mais rápido que pode e retornou, trêmulo e ofegante de pavor, para a cidade. Ele rezava e se benzia. Realmente não sabia se o que tinha presenciado era real ou um surto. “Mas surto nunca tivera e tudo parecia tão real.”
            De volta à cidade, era já quase quatro e meia da madrugada. Decidiu passar em frente do ginásio de esportes para ver se pelo menos o baile tinha ocorrido. Ao chegar a cem metros da entrada, visualizou três ambulâncias e dois carros da polícia com o irritante giroflex ligado. O que teria acontecido? Foi verificar. No interior do ginásio de esportes, vários homens caídos; enfermeiras e socorristas os examinavam. Alguns enfermeiros meneavam cabeça num nítido sinal de morte. Norberto deu um grito de horror quando viu que todos os homens que tinham beijado Lígia estavam mortos.  Trêmulo, perguntou para um enfermeiro o que estava acontecendo. O enfermeiro disse que ao que tudo indicava se tratava de morte por envenenamento, mas iriam mandar os corpos para o IML para certificar.
            Norberto foi embora apavorado, tomou um banho e começou a se esfregar freneticamente para que os lugares do seu corpo que tinham entrado em contato superficial com Lígia não o contaminassem. Em seus devaneios achou que poderia se tratar de alguma doença altamente infecto contagiosa.
            Foi se deitar, estava exausto e trêmulo. Naquele resto de noite dormiu de luz acessa. Sonhou que estava beijando Lígia, ele tentava fugir dela mais não tinha forças para resistir a seus encantos. Enquanto a estava beijando a sensação era maravilhosa, mas quando as bocas se separavam vinha a sua mente a cena de todos aqueles homens mortos e então começava a cuspir. Quando acordou foi direto ao banheiro para lavar a boca, estava com um gosto doce. Ficou por cerca de uma hora escovando os dentes.
            Depois disso Norberto ficou completamente estranho, não conseguia falar com mais ninguém, nem com sua mãe. A sensação de pânico era real. Para completar o seu medo, o cortejo fúnebre das vítimas passou pela frente de sua janela, já que residia na rua do cemitério central. A mãe entendeu que o filho devesse estar traumatizado em razão do que quer que tenha ocorrido naquele maldito baile.
            Durante uma semana sonhou o mesmo sonho com Lígia. Não estava aguentando mais escovar os dentes, as gengivas estavam a ponto de sangrar. Não foi mais para o trabalho e ficou trancado em seu quarto. Imaginava quem seria Ligia e por que ela estava fazendo isso. Começou a pesquisar na internet, mas não havia registro de Lígia Strowski.
            Nos raros momentos em que não estava surtando de medo, imaginava os beijos saborosos que dava em Lígia Strowski em seus sonhos e que depois de dados se transformavam em asco. O beijo dela era como uma droga que ele não tinha mais forças para resistir. Comprou quatro litros de antisséptico bucal e fazia gargarejos constantes.
            Não suportando mais a situação decidiu que tinha de saber quem foi Lígia Strowski. O único jeito seria perguntar para os moradores mais idosos da colônia São Miguel e que deveriam conhecer aquele cemitério e seus mortos. Encontrou um senhor de uns oitenta anos, bem lúcido. Durante muito tempo aquele senhor foi o coveiro daquele lugar.
            – O senhor conheceu Lígia Strowski, seu Nicolau?
            – Sim, era uma moça muito bonita.
            – E de quê ela morreu?
            – Alguém a presenteou com um batom negro. – Norberto teve um arrepio.
            – Mas a moça morreu por quê?
            – O batom tinha um veneno potente, e algumas horas depois que ela espalhou o batom nos lábios começou a ter uma forte convulsão e morreu.
            – Minha nossa, e quem fez uma barbaridade dessas?
            – Ai que tá, ninguém sabe.
            – Quando foi isso?
            – Foi em 1980!
            Norberto foi embora com as palavras do velho na cabeça: “foi em 1980”. Curioso! Fazia uma semana que Norberto não ia ao trabalho e não conversou com ninguém exceto com seu Nicolau. Chegando a casa sua mãe não suportou mais a situação e perguntou quando é que ele voltaria ao trabalho e conversaria com ela. Ele só respondeu com um sorriso amarelo.
            Na mesma noite sonhou novamente com Lígia Strowski. Ele não aguentava mais isso. Dessa vez não foi escovar os dentes. Pegou seu carro e decidiu ir direito ao cemitério da colônia. Eram quatro e meia. Deixou o uno na beira da estrada e subiu as escadas. Quando chegou ao jazigo de Lígia a chamou.
            – Lígia, Lígia, onde você está? Apareça! Por que está fazendo isso comigo?
            O silêncio foi fúnebre, ele começou a chutar o túmulo e a gritar; chorava desesperado, querendo se descabelar. Durante dois minutos gritou e se escabelou freneticamente. Quando sentou exausto na lápide de Lígia, ofegante, choroso e desanimado, sentiu uma mão em seu ombro, girou rapidamente o tronco. Era ela. Lígia Strowski. Linda como a havia visto no baile.
            – Lígia, quem foi que te envenenou?
            – Foi uma garota que ficou com ciúmes porque o cara que ela queria era apaixonado por mim...
            Antes que ela falasse mais Norberto se aproximou de Lígia e tascou um longo e delicioso beijo de língua nela. A sensação que teve foi de felicidade plena. Finalmente, pensou. Logo que as bocas se afastaram Lígia perguntou.
            – Você não vai querer saber quem é a garota que me envenenou?
            – Quem era ela, Lígia, meu amor?
            – Sua mãe.
            Nisso Norberto não viu ou ouviu mais nada, apenas silêncio e trevas. No outro dia, pela tardezinha, a polícia encontrou o corpo de Norberto jazido em cima da lápide de Lígia Strowski.
            Quando a mãe de Norberto soube da notícia teve um surto nervoso e ficou internada. Em coma só dizia uma frase, repedidas vezes. Foi em 1980, foi em 1980, foi em 1980...