O mugido era a única reclamação que
podia se ouvir de Sereno, um boi de trela baio, de porte mediano e chifres
avermelhados. Nasceu em uma fazenda há aproximadamente cinquenta anos. Foi
desmamado, castrado, e na idade apropriada, por que era muito manso,
adestraram-no como boi de trela. Na fazenda havia muitos outros bois assim, mas
Sereno foi emprestado ou alugado para dois açougueiros, um pai e um filho que
tinham um modesto açougue na região central da pequena Cidade.
Os meios de locomoção naquela época,
notadamente no interior, eram, cavalo, carroça, charrete e principalmente as
pernas, pois eram pouquíssimas as pessoas que tinham veículo. Caminhão ou
caminhonete com grade de puxar boi ainda não existia na região. Desse modo, os
açougueiros de então tinham que buscar, a cavalo e a laço, os bois para o abate,
nos sítios da região. Tal busca demorava, na maioria das vezes, o dia todo. Laçavam
o novilho e o atrelavam a Sereno que o conduzia pela estrada até ao Matadouro Municipal,
em silêncio e submisso, como quem cumpria uma missão.
Não havia tempo ruim para Sereno,
quando os outros bois ou vacas que conduzia lhe eram atrelados, ele usava de
sua inteligência condicionada pela experiência para arrastá-los, caso o boi que
lhe estava atrelado tentasse correr para o lado oposto ou para outra direção,
Sereno o acompanhava alguns passos e repentinamente girava o corpo na direção
determinada, conduzindo a rês para o destino que queria. As técnicas e a
experiência de Sereno praticamente não davam chance de resistência àqueles que
lhe eram atrelados, ademais, como sendo semelhantes, os bois ou vacas que
trazia, sentiam-se entre iguais, por isso, não demorava muito para que o
seguissem, iam direto ao destino cruel determinado à espécie. Sem saber, matavam
a fome de muitos, até das formigas, que se aproveitavam dos restos. Nada se
perdia, a não ser a parte imaterial do animal.
Pai, filho e Sereno eram admirados
pelas pessoas do lugarejo, principalmente quando voltavam à Cidade. A cena da
chegada era admirável, sobretudo ao entardecer, quando o sol os emoldurava em
uma tela viva: os dois cavalos negros e imponentes, Sereno com sua
impassibilidade calma e submissa, o boi atrelado e os cavaleiros jactanciosos
por ter cumprido a missão. Tal cena fazia com que as mulheres saíssem à janela
para ver os açougueiros passar. As crianças, com os pés descalços e as roupas
rotas, corriam pela rua empoeirada espalhando pó ao vento. Elas adoravam o Sereno.
“Como ele é mansinho! Olha a força dele, ele puxa o outro boi como se fosse
nada! Como ele é bonito! Serêêêno, Serêêêno, aôôu, aôôu!” Essas eram as
palavras e interjeições dos meninos brincalhões. Alguns passavam horas a fio
brincando de conduzir bois, havia um deles que até sonhava em ter um boi de
trela mansinho e bom como o Sereno.
As aventuras de Sereno eram muitas e
a cada dia que cumpria sua missão (cerca de duas ou três vezes por semana, a
depender da demanda) se formava uma história que nas mãos de um hábil poeta,
poderiam transformar-se em canções ou poesias. Certa vez, por exemplo, os
açougueiros demoraram a laçar o boi que iria ser abatido, de modo que a noite
não esperou e caiu rápida e gelada. Depois de finalmente atrelarem o boi a
Sereno, desmontaram e se dirigiram a uma venda em um pequeno Patrimônio, pediram
um pão com mortadela e um copo de capilé. Forraram o estômago e enganaram a
fome. Quando se deram conta de observarem lá fora, não viram nem Sereno nem o
outro boi, ficaram procurando pelo mato até altas horas, como se fracos pelo
insucesso da procura, retornaram e não foi pequena a surpresa alegre ao ver
Sereno esperando com o boi atrelado na beira do tronco do matadouro. Como
sempre, esperava que alguém o desatrelasse e o soltasse no pasto onde se
alimentava, junto com os cavalos e duas vaquinhas de leite.
Numa outra ocasião, quando o céu
ameaçava uma grande tempestade, Sereno, pressentindo o perigo, deitou no chão e
estacou, os açougueiros tentavam levantá-lo através de empurrões e gritos, mas
não conseguiam, tiveram que esperar. Esperaram muito tempo, porém foram salvos
da morte pela empacada de Sereno, pois enquanto ele ficou parado, a água do rio
que teriam de atravessar por intermédio de uma ponte de madeira, subiu
rapidamente, levando a ponte embora em questão de segundos. Após a ponte cair,
Sereno se levantou e os açougueiros acreditaram que era um milagre, agradecendo
a Deus em seus corações.
Determinado dia, Sereno estava trazendo uma vaca por uma estrada de terra
ladeada por algumas árvores que cobriam seu leito com uma sombra suntuosa e fresca.
Era necessário atravessar uma ponte de madeira, acontecimento normal, não fosse
o fato de a vaca estar se agitando muito, tentando ir para várias direções, por
esse motivo, Sereno praticamente a arrastava. Por tudo isso, quanto chegaram exatamente
em cima da ponte, a qual era sobreposta há quatro metros acima do nível da água
de um pequeno ribeirão, a vaca, ainda atrelada a Sereno, se precipitou de cima
da ponte, este, com sua força de boi, estacou os cascos e foi escorregando com
o peso da vaca, mas inteligentemente e calmamente apoiou as patas na viga
pregada na beirada da ponte e assim sustentou-a, a qual ficou dependurada, girando
lentamente no ar. Sereno não soltou sequer um berro, sua fisionomia continuava
a mesma. A calma de Sereno era tão grande que ele, mesmo na beirinha da ponte, olhava
para a vaca, balançava as orelhas e espantava algumas moscas com o rabo. Não
era possível, todavia, ele erguer a vaca, pois seus cascos não encontravam
aderência para puxá-la, apenas a sustentava calmamente, como que esperando uma
ação dos açougueiros. Vendo isso, os açougueiros se admiraram e sabiam que
tinham de tomar alguma providência, então o filho do açougueiro apeou
rapidamente de seu cavalo e puxando a faca da bainha, cortou a corda que unia
Sereno a vaca, esta caiu no ribeirão e se alongou no mato, tendo de ser laçada
mais tarde.
Por todos esses acontecimentos e por
muitos outros, Sereno era uma lenda viva naquela localidade. Cada pessoa da pequena
Cidade tinha um causo para contar sobre ele.
O serviço dele era levar os
semelhantes ao matadouro e ele o fazia bem e sem questionamentos, não há como
saber se ele sentia o cheiro de sangue do abatedouro, mas de qualquer forma,
nunca demonstrou que sentisse, era do tipo, pode-se dizer, de boi que todo o
patrão deseja. Não se sabe se Sereno tinha ou não consciência do que fazia,
talvez tivesse, mas como ser diferente? Ele era só um boi e não podia opinar
nem que quisesse. A revolta não fazia parte de seu ser, o raciocínio, não se
sabe como funcionava, ou os outros bois não representavam nada para ele, se representassem,
não haveria como os salvar, no mundo havia os carnívoros, dos quais não há
escape. Ainda há a possibilidade de que fazia o serviço devido a interesses,
pois enquanto estivesse trabalhando, não seria devorado, porém tais
apontamentos são apenas hipóteses e ninguém vai saber se correspondem ou não a
realidade. Não nos é dado sondar os pensamentos de um animal.
O progresso foi chegando e logo os
açougueiros não mais precisaram dos serviços de Sereno, devolveram-no ao seu
dono, as crianças sentiam falta dele e perguntavam frequentemente: “Onde está o
Sereno, por que ele não está mais trazendo os outros bois?” Havia ficado enfadonho
para os açougueiros explicarem para os piás. Todo dia faziam a mesma pergunta.
No entanto as perguntas não duraram muito, passado alguns dias, pararam de
perguntar, começaram a brincar de bolinha de gude e as lembranças de Sereno
pouco a pouco se apagavam de suas pequenas memórias.
Não havia mais utilidade para os
bois de trela da fazenda, então o proprietário resolveu vender alguns deles
antes que ficassem velhos demais, quando a carne fica muito dura e o osso
pesado, além do que demoram muito para engordar. Sereno foi vendido para o
abate, e foram os mesmos açougueiros que o utilizaram os abatedores. Por um
momento houve uma reflexão dos açougueiros: “Dava uma dó matar um boi que nos
ajudou tanto”.
Quando Sereno, já no curral para ser
abatido reconheceu os açougueiros, berrou num sinal de reconhecimento e lambeu a
mão do filho do açougueiro, não se sabe se Sereno estava resignado com o
destino que o aguardava ou se tinha ainda uma esperança de viver. O açougueiro
pai disse: “Realmente é de dar dó, mas nós não podemos fazer nada para mudar o
destino do boi, apesar de nos ter servido muito bem. Aqui, meu filho, não só
ele, mas nós somos impotentes contra esse destino ingrato, mesmo que o soltássemos
no pasto, o fim dele seria morrer de velho, o que é muito pior, pois seus
dentes começariam a cair e seria custoso para ele pastar, vamos deixá-lo
morrer, é o mais sensato.”
Sereno, olhava ao redor e parecia se
lembrar de todos os bois que trouxera para o abate, provavelmente sabia o que o
aguardava, mesmo assim não recuou, foi adiante sem virar nem para direita, nem
para a esquerda. Finalmente, atingido pela lança em sua nuca, caiu agonizando e
foi enfim sangrado. Assim se deu o fim da vida de Sereno.
Muitos dos que admiravam Sereno
comeram a carne dele, alguns sabendo, outros sem saber, e a acharam muito saborosa,
como de qualquer gado, apenas o menino que sonhava em ter um boi como Sereno,
chorou, pois sua mãe, pobrezinha, houvera pedido no matador a cabeça do boi
para retirar os retalhos e usá-los como mistura. (os açougueiros sempre davam
os pés e as cabeças dos animais abatidos)
Quando em sua casa o rapazinho viu a
cabeça daquele boi amado e que apesar de ser um animal era seu herói, chorou
muito e recusou comer a carne arrancada daquela cabeça, sua mãe ficou admirada
com o filho, depois descobriu que era a cabeça de Sereno que estava ali. O menino
esperou que a mãe retirasse todos os retalhos da cabeça, cavou uma cova grande
e a enterrou ali, junto com um pedaço de papel, onde escreveu, com os
garranchos que lhe eram próprios: “Adeus Sereno, espero que um dia te veja no céu”.
Nunca mais ninguém falou de Sereno, até o dia em que aquele que enterrara a cabeça,
desenterrou de sua memória essa história.